Um devaneio pelas ruas de Porto Alegre
Fazia duas horas que eu estava parado na República com a João Alfredo. Um copo de cerveja na mão. Todo mundo a minha volta não fazia mais sentido, todos só giravam, riam e falavam coisas que nunca entenderei. Saí em busca de um sonho, o sonho porto-alegrense. Sem pensar no sentido disso tudo. Fui atrás, eu e meu irmão - na verdade, ele só é alguém muito parecido comigo - pelos bares, pelos bordéis, pelas ruas e pelas pessoas. E como fomos acabar assim, selvagens e beirando o retardamento mental? E, ainda por cima, nem perto de sonho algum.
O relógio nem marcava três horas, o sol forte, e eu já sentado num bar, na Riachuelo, sozinho. Esperando meu irmão. Tomando uma cerveja e ouvindo, ouvindo se escutava o sonho, atrás de pistas, de respostas. A atendente, simpática e com um olhar pouco vesgo, me serviu mais um copo, e paguei os cigarros. Um grupo de homens, velhos na verdade, sentados a minha frente tinha um jornal largado no canto da mesa. Eu pedi emprestado. Talvez se eu me informasse um pouco mais, se eu soubesse o que está acontecendo
Um outro homem chega, e se aproxima dos que ali estavam. “Olha só, comprei esse pepino. Foi só três reais e noventa e cinco centavos. Tá trinta centavos mais barato que semana passada. Eu queria levar um carrinho cheio, mas não tenho mais espaço no porta-malas”. E na mesma sacola do pepino havia uma garrafa de vodka, que retirou e entregou pra dona do boteco. Aqueles velhos senhores devem vir muito aqui. Não eram os donos, com certeza. O que eu estranhava é que eles não pareciam decadentes. Usavam bons ternos, sapatos novos e celulares que nem imagino tocar. Talvez estes só fossem bêbados comuns, com grana, e sem muita alma. O Mano chegou, terminamos a cerveja, comprei mais uma carteira de cigarros, só pra garantir, e partimos.
Descemos até a Salgado Filho e continuamos pela Senhor do Passos. No meio do caminho paramos num sebo, o Mano tinha um livro escolar velho e queria vendê-lo. A atendente olhou, virou, conferiu a data, olhou para sua colega com uma cara de interrogação, riu para nós, ela não parecia saber o que estava fazendo. Passou mais um tempo, e disse: “Três reais”. Vendido. Pegamos o dinheiro, dava para mais uma cerveja. Alfredo, o meu suposto irmão, me olhou e sugeriu que fôssemos a um puteiro, o sonho podia estar por lá.E foi o que fizemos. Chegamos a uma casa de dois andares, com uma fachada vermelha e preta, o
Achei que iríamos ser expulsos. Estava quase certo disso, e estava adorando a idéia. Tudo foi frustrado quando um homem chegou junto à mesa do delegado e de mais um homem comum na nossa frente. Ele usava um jeans tão desbotado que estava branco, e uma camisa azul com uma estampa indecifrável com três botões abertos, aparecendo os pêlos do peito. Gritava sem parar. “Querem uma cerveja?”. “Cadê as gostosas?”. E caminhava de um lado para outro. Ficava no bar e a cafetina local tentava manda-lo sentar, sem sucesso, sempre. Ele usava um mullet, e tinha o cabelo encaracolado. Parece o Roberto Carlos, comentou meu irmão. Parecia mesmo, o Tremendão atacava novamente. Ele dava seu show, dançava, e a cada passo um botão se abria. Dançava somente para as putas. Era só ele e elas que estavam lá, ocasionalmente lembrava de seus amigos e gritava: “Querem uma cerveja?”. Eles nunca queriam, estavam envergonhados. E ele trazia mais uma mesmo assim, nem sempre gelada. Girava e rodopiava. Parecia saber de algo, mas era impossível chegar perto do Tremendão, ele só queria a mulheres. Não havia mais nada para nós lá.
Caminhamos mais um pouco, agora em direção a outro prostíbulo, um não, um prédio cheio deles. Entramos logo no primeiro. As mulheres ficam na grade das portas como animais no zoológico, chamando todos que passavam, só que aqui era, não só permitido, como obrigatório alimentar os animais. Sentamos num banco duro e desconfortável, um cheiro estranho entrava na narina e roubava os pensamentos. Uma mulher loira, gorda, com um lingerie uns três números menores que o dela, sentou-se a nosso lado e começou: “Vocês são irmãos, não é?”. Olhei para o Mano, e sim, mentimos. “Olha a gente pode fazer uma orgia, trinta por garota, e os dois podem fazer as duas. É uma boa, não?”. Não, aquela não era uma boa idéia, e na verdade, não conseguia pensar em idéia pior do que aquela. Resolvi abrir o jogo, mas pedi pra ela trazer uma cerveja antes, é claro. Foi, voltou e nos serviu. Tomei um gole e comecei a explicar que nós éramos jornalistas fazendo uma matéria, estávamos em busca do sonho-porto alegrense. Não sei se ela fingiu ou não – nunca soube dizer quando as mulheres fingem – mas demonstrou um grande interesse. Ficou uns dez minutos falando conosco. “A população precisa se revoltar, ir para as ruas e reclamar de tudo isso que ta acontecendo”. Ela não parecia ter muita noção do que dizia, mas dizia com paixão e com um jeito sexy, ou pelo menos, o que ela acreditava ser sexy. Esse não era um bom lugar para estar, não porque as mulheres eram feias, isso até era bom. Mas o ambiente estava me sufocando.
Fomos subindo as escadas, o prédio tinha quatro ou cinco andares, cada andar uns três bordéis. Todos pareciam jaulas. Nenhum dava vontade de entrar, além do mais a cerveja era muito cara: sete reais. Chegamos até o último andar, e na porta havia uma faixa: “HOJE, 6H DA TARDE, SEXO AO VIVO!”. Entramos. Logo na entrada havia um som e mais música ruim. Eu procurei pelo gerente. Apontaram um sujeito com cara de ser novo e corpo de velho, usava aparelho e tinha um olhar perdido. Seu nome era Alex. Fui falar com ele. Cheguei e pedi licença e disse que tinha que fazer umas perguntas para ele. “Já sei o que é... Quer cocaína? Não tem agora”. Não, eu não queria cocaína agora, por mais interessante que a proposta parecia ser. Eu queria um desconto na cerveja e foi o que consegui, um real, nada muito exagerado, mas eu não estava em condições de lutar por mais. Sentamos num sofá velho, e pedimos um cinzeiro. Eu e meu irmão fumávamos um atrás do outro, e isso que ele não fuma regularmente, esse era um ocasião especial. As meninas pareciam dementes feitas para o sexo. Qualquer objeto elas esfregavam na sua genitália e olhavam para os que ali estivessem com uma cara de .tarada, na verdade era só muito patético. Uma televisão na parte superior da parede mostrava um filme pornô. Um homem e uma mulher, um cuspia no outro e sussurravam um para o outro: “Me fode gostoso”, “rápido”, “devagar”, “fundo”, e não mudavam disso. Faltava meia hora para o show, o Mano perguntou que horas iria começar e responderam que só começaria se lotasse. Só o mano, um louco que não falava coisa com coisa e eu. Não havia muitas esperanças que o show realmente acontecesse. Pedi mais uma cerveja. Sentei para esperar o show, ou qualquer coisa parecida.
Seis horas e nada. Apenas uma vendedora de produtos de beleza chegou com uma sacola cheia de diversão para as meninas. As prostitutas olhavam, cheiravam, liam o rótulo, trocavam entre si e, é claro, esfregavam tudo o que podiam no meio das pernas, com suas caretas assustadoras. Era hora de ir embora.
Não havíamos comido nada desde o meio-dia, e como nenhum de nós – eu e o Mano – somos, exatamente, magros a fome estava batendo. Descemos a Alberto Bins, em direção a Independência, mas no meio do caminho meu irmão quis ir ao banheiro. Estávamos na frente do Hotel Plaza São Rafael, parecia um bom lugar para utilizar o banheiro, com certeza seria limpo. Entramos com um pouco de vergonha. No bar alguns tomavam café, outros vinho e pouquíssimos bebericavam com classe. O contraste com o ambiente anterior era enorme, não havia nenhum sinal de sonho, todos eram corretos e contentes demais. Enquanto Alfredo, o Mano, urinava, eu, já bem mais a vontade sentei numa poltrona confortável, folhei uma revista que nem vi sobre o que era, tirei um telefone, que estava ao lado da poltrona, do gancho e disquei para minha namorada. O telefone não funcionava, não consegui linha, mas, na verdade, eu não funcionava mais, estava selvagem. Notei alguns olhares de reprovação de um gerente ou algo do tipo, desviei o olhar e esqueci daquele sujeito com o nariz tão grande que quase cobria o lábio superior. A atividade no banheiro estava terminada. Fomos embora, e aquele olhar de reprovação devia estar cheio de lágrimas, era a felicidade, não haveria luta no saguão..
Nossa barriga ainda roncava, e chegando à Independência fomos atrás de um supermercado, comida barata e sem gosto. Não chegamos lá, o Bambus chegou antes, e sentamos e pedimos uma cerveja. “A mais barata, por favor”. A sensação de tomar uma cerveja por três reais, após tantas de seis ou sete, foi como ganhar uma Olimpíada, só que um pouco melhor. Só tomamos uma, a fome nos venceu. Chegamos a um mercado, na mesma rua, daqueles meio vagabundos. Chegamos e fomos direto à prateleira dos vinhos, graças a Deus, nós não fomos fracos. Pegamos o mais barato, um litro e meio, garrafa de vidro. Aquele vidro poderia trazer problemas, alguém poderia morrer ou se ferir gravemente, então fomos sensatos o suficiente para ir atrás de um vinho com garrafa de plástico. Sem contar, é claro, que o preço não estava justo. Passamos por um stand de provas. “Olha, provinha, comida de graça”, gritou Alfredo. Era iogurte de ameixa. Muito saudável, muito ruim. Fizemos cara de nojo e fomos embora acompanhados das caras de nojo de todos os clientes e funcionários. Na saída uma senhora com uma cara simpática e cheia de compras nas mãos disse: “Vocês são gêmeos?” – concordamos com a cabeça – “Que legal que vocês andam juntos. Que amor”. Aquela velha, que parecia a avó do Homem-Aranha e tinha o mesmo apelo sentimental, merecia uma ajuda. Eu agarrei as sacolas de um lado e o Mano de outro. “Nós te ajudamos”. A expressão dela mudou, achou que fosse um assalto ou algo assim. É fácil entender, estávamos com os olhos esbugalhados, exalando álcool por cada poro do nosso sangue e andando feito dois pingüins com gastrite. Andamos mais rápido e sumimos.
Descemos em direção do Zaffari do Bom Fim. No meio do caminho achamos um armazém que devia ter uma grande coleção de vinhos baratos. Procuramos bem e achamos, eu tentei um desconto, mas o atendente ficava dizendo que não tava na mesma viaje que a minha, mas eu retruquei e disse que jamais contaria para ele onde e o que era o sonho porto-alegrense. Abrimos a garrafa tomei um gole e depois o Mano, que disse que aquele vinho devia durar umas três ou quatro horas, caso contrário estaríamos perdidos. Fomos caminhando e encontramos o supermercado. Sentamos no banco do ponto de táxi. Taxistas sabem o caminho para todo o tipo de lugar, desde as melhores mulheres até as melhores drogas, eles podiam saber onde estava o sonho. E perguntei. Um por um riu de mim, ou perguntou se era uma boate, um bar, mas nenhum sabia. Uma senhora estava passando pelas nossas costas e meu irmão a questionou sobre nosso sonho. Ela sentiu medo, apertou o passo e dobrou a esquina. Bebíamos nosso vinho como se nunca tivéssemos bebido nada na vida, como dois selvagens. Logo ele acabou. Menos de meia hora. Era hora de reabastecer, fizemos o caminho inverso e compramos outra garrafa, e fomos bebendo até o mesmo ponto de táxi, até que Alfredo derrubou um pouco na camisa, e começo a gritar enfurecido. Duas meninas passavam e ele perguntou se dava pra ver o vinho na camisa dele. Responderam que não. Então ele apontou. “Aqui, olha!”. Agora sim elas viram e confirmaram o que ele suspeitava e, no fundo, sabia: ele estava sujo. Segurou os cabelos com a mão e os puxou para cima num gesto desesperado. Não tive o que fazer, só ri, ri até não poder mais, ri tanto que ele começou a rir comigo. Rimos até um senhor, com uma camiseta do Jornal Oi, passar. “Onde fica o sonho porto-alegrense?”. Ele sorriu e, pela primeira vez, alguém que não fosse obrigado, nos escutou. Ele disse que não sabia direito o que era, mas que vivia ele todo o dia. Ganhava a vida pela internet. Disse que ganhava muito dinheiro e que em dois anos compraria uma caminhonete Volvo. Ele parecia saber das coisas. E começou a nos explicar como fazia o seu trabalho. Digitava num teclado inexistente a sua frente, com onomatopéias e tudo. Explicou por horas, mas era só mais uma pessoa louca que nós encontrávamos. Nada fez sentido, e o pouco que pudesse fazer não tínhamos a capacidade de entender. Nós também poderíamos fazer o que ele faz. Quatro horas por dia, era só acessar web empregos e pronto. Nada faz sentido.
Não entramos no Zaffari, não comemos, somente continuamos a caminhar. Toquei num interfone de um prédio, um número qualquer, e perguntei pelo nosso sonho. Desligaram na minha cara. Resolvi fazer em todos, mas dizendo que eu era um jornalista sério a trabalho. Nada. Só desligaram na minha cara.
Caminhamos a João Telles até o bar Ocidente. Eu fiquei um pouco atrás e meu irmão viu um grupo que parecia saber algo, eles olhavam dvds e discutiam sobre eles. Cheguei junto ao grupo, expliquei que aquilo não passava de uma matéria jornalística, e que nosso estado deplorável era pura imaginação da cabeça deles. Eles riram alto e de um modo muito afetado, não sei se de mim, o que não fazia a mínima diferença. Um deles, de cabelo encaracolado, óculos, e uma cara de nojo, que estava na minha frente disse: “Este aqui é o artista plástico famoso Cho. C-H-O, Cho”. Eu ri, mas ri deles. Era uma conversa animadora, de um lado eu os achava ridículos do outro eles me achavam patéticos. Cho, o grande artista, disse que achou o sonho dele, que realizou muitas coisas que queria e um monte de coisa que não faz diferença. Ele era legal e tudo mais, só não precisava de apresentações calorosas.
Sentamos nas mesas da rua de uma pastelaria, do outro lado da rua de onde estávamos. Pedimos uma cerveja para ajudar o vinho a descer. Meus cigarros acabaram e comprei outro. O garçom era um sujeito legal, ninguém iria querer dois tipos como nós num bar, ainda mais, no início da noite. Eu entrei para ir ao banheiro e me dei conta: era hora de comer. Gritei para meu irmão se queria um pastel também, ele concordou e gritou de volta que queria de carne. Fiz o pedido. E mais, sugeri que ele não nos cobrasse, pois aquilo era uma matéria jornalística muito séria e que o nome da pastelaria dele iria aparecer. Ele não concordou. Eu ainda insisti mais um pouco e nada de ele ceder. E eu tentei mais. “Imagina a publicidade que é o nome do teu estabelecimento numa matéria tão grande e importante como essa”. Ele perguntou sobre o que era. “Estamos atrás do sonho porto-alegrense”, respondi. Ele riu e me mandou sentar para esperar os pastéis.
Estávamos sentados sem objetivo, a noite ainda estava por começar. Até que uma ligação nos salvou. Conseguimos entrar de graça num bar. Chegamos à frente do bar como linhas brancas e rápidas pela escuridão porto-alegrense. Podíamos entrar, mas como iríamos beber? O dinheiro era um problema, não podíamos ficar sem beber. O último gole do vinho eu acabara de derrubar sobre minha camisa numa comemoração ridícula. Mexemos alguns pauzinhos e pronto, poderíamos beber algumas cervejas de graça. Entramos, havia um show cover de Chico Buarque e a platéia era clássica para esse evento. Um mar de tênis All-Star, camisas xadrez e listadas, as mulheres com maquilagem excessiva e tudo que Chico tem de direito ou de fardo. Comecei a perguntar a todos sobre o sonho porto-alegrense, alguns riam, outros me davam bebidas – os que eu mais gostava – e um me disse: “O sonho porto-alegrense é um granal empatado em oito a oito. Todo mundo sairia feliz”. Tomei um gole da cerveja dessa pessoa e virei as costas. E a música rolava no fundo, e idas periódicas ao banheiro atraiam um multidão, e todo mundo parecia se sentir bem, riam, bebiam, fumavam, cheiravam, era uma vida boa, talvez, até, uma pequena parte de um sonho. E roda viva; roda-gigante, e todo mundo rodava a minha volta, roda moinho; roda pião, roda o mundo todo comigo num só gozo bêbado, como moscas de bar, o tempo rodou num instante, e eu rodava junto com tudo sem saber por que, nas voltas do meu coração, e eu me perdi.
Cansei de tudo aquilo, de todas aquelas pessoas e caminhei para outro lugar em busca de uma carona para casa. Ainda tinha pouco dinheiro, queria comer mais alguma coisa. Queria sair desse sonho. Queria cair na cama. Parei numa esquina e peguei uma cerveja. Fiquei com este copo, e muitos outros falando, com pessoas estranhas, mesmo as que eu conhecia.
Fazia duas horas que eu estava parado na República com a João Alfredo. Um copo de cerveja na mão. Todo mundo a minha volta não fazia mais sentido, todos só giravam, riam e falavam coisas que nunca entenderei. Saí em busca de um sonho, o sonho porto-alegrense. Sem pensar no sentido disso tudo. Fui atrás, eu e meu irmão - na verdade, ele só é alguém muito parecido comigo - pelos bares, pelos bordéis, pelas ruas e pelas pessoas. E como fomos acabar assim, selvagens e beirando o retardamento mental? E, ainda por cima, nem perto de sonho algum.
E tudo que senti foi como uma mosca de bar.